A Biblioteca da Meia-Noite: Uma Jornada pela Psicologia Fenomenológica Existencial

A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás, mas só pode ser vivida olhando-se para frente.”  — Søren Kierkegaard  

“A Biblioteca da Meia-Noite” (2020), de Matt Haig, apresenta uma narrativa profundamente existencialista, centrada na vida de Nora Seed, uma mulher consumida por arrependimentos e desesperança. Ao explorar a fronteira entre a vida e a morte, a obra mergulha nas questões fundamentais da existência, como liberdade, autenticidade e a busca por significado. A psicologia fenomenológica existencial, com raízes filosóficas em pensadores como Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre e Viktor Frankl, oferece uma abordagem rica para interpretar a jornada de Nora.  


A Psicologia Fenomenológica Existencial: Uma Breve Introdução  

Essa abordagem psicológica valoriza a experiência subjetiva do indivíduo em seu mundo vivido (Lebenswelt), focando na maneira como cada pessoa atribui significado à sua existência. Diferente das abordagens que buscam categorizar sintomas, a psicologia fenomenológica existencial explora como a pessoa percebe e vivencia sua realidade, suas relações e seu futuro.  

Alguns conceitos centrais dessa perspectiva — liberdade, responsabilidade, angústia e autenticidade — ressoam profundamente na trama do livro.  

O Espaço Liminal: A Biblioteca como Metáfora do Ser-no-Mundo  

Nora Seed, após uma tentativa de suicídio, desperta em um espaço misterioso: a Biblioteca da Meia-Noite. Cada livro contém uma versão diferente de sua vida, baseada nas escolhas que ela poderia ter feito. Esse espaço liminal reflete o conceito de Ser-No-Mundo, ou Ser-Aí (Dasein), de Heidegger, que enfatiza a consciência de estar lançado em um mundo onde cada escolha carrega peso e significado.  

- A Temporalidade Existencial: Para a fenomenologia existencial, o tempo não é apenas cronológico; ele é vivido. Nora confronta o passado (seus arrependimentos) e o futuro (possibilidades não exploradas), revelando como o ser humano é essencialmente um projeto, sempre em construção.  

A Liberdade e o Peso das Escolhas  

Sartre afirmava que “o homem está condenado a ser livre.” Nora, ao explorar vidas alternativas, é forçada a confrontar a liberdade radical que tem sobre seu destino. Cada versão da sua vida é um reflexo das escolhas que ela poderia ter feito, e cada possibilidade traz consequências únicas.  

- O Alívio da Responsabilidade: Inicialmente, Nora acredita que encontrar a “vida perfeita” resolverá seus problemas. No entanto, ela percebe que a liberdade não elimina a responsabilidade — cada vida carrega desafios e insatisfações próprias.  

- O Peso Existencial: A angústia de Nora reflete a experiência existencial da responsabilidade: ao perceber que não há um destino pré-determinado, ela compreende que cada escolha define sua existência.  

A Busca por Autenticidade  

A autenticidade é um dos pilares da fenomenologia existencial. Para Heidegger, viver autenticamente significa aceitar a finitude da vida e tomar posse das próprias escolhas, sem se esconder atrás de expectativas alheias ou convenções sociais.  

Nora, em suas viagens pelas diferentes versões de sua vida, confronta a questão central: O que significa viver autenticamente?  

- Expectativas Externas vs. Verdade Interior: Em várias vidas, Nora percebe que seguiu sonhos que não eram verdadeiramente seus, mas impostos pela sociedade ou pelas pessoas ao seu redor. Ela revisita realidades em que é uma atleta olímpica, uma roqueira famosa ou uma esposa devota, mas sempre sente um vazio.  

- Reconciliação com o Ser: A transformação de Nora acontece quando ela percebe que a vida autêntica não é aquela sem dor ou desafios, mas aquela que ressoa com seu verdadeiro eu.  

A Angústia Existencial e a Confrontação com a Finitude  

A iminência da abreviação da vida de Nora e sua jornada pela biblioteca representam o confronto com a finitude — outro conceito central na fenomenologia existencial. A experiência de estar entre a vida e a morte permite que Nora encare a realidade de sua própria mortalidade, algo que, segundo Heidegger, é fundamental para viver autenticamente.  

- A Morte como Condição da Vida: Ao explorar as múltiplas vidas, Nora percebe que a morte é uma condição inevitável. A consciência dessa finitude, paradoxalmente, a liberta para valorizar a vida que tem.  

O Sentido da Vida: A Perspectiva de Viktor Frankl

Viktor Frankl, psicólogo existencial e autor de Em Busca de Sentido, argumentava que o sentido da vida não é algo a ser descoberto passivamente, mas construído ativamente. Nora, ao longo de sua jornada, percebe que não existe uma vida perfeita, mas que o sentido pode ser encontrado no dia a dia, nas pequenas conexões e escolhas.  

- O Sofrimento e o Significado: Frankl acreditava que mesmo o sofrimento pode ter significado. Nora, inicialmente consumida por arrependimentos, aprende que cada experiência — boa ou ruim — contribui para a construção do sentido.  

Conclusão: O Projeto Existencial de Nora Seed  

A Biblioteca da Meia-Noite é mais do que uma narrativa sobre vidas alternativas; é uma exploração profunda do que significa existir. A psicologia fenomenológica existencial nos ajuda a entender a jornada de Nora como um processo de reconciliação com a liberdade, a responsabilidade e a autenticidade.  

Ao final, Nora compreende que a vida não é definida pela ausência de sofrimento ou pela busca de perfeição, mas pela capacidade de habitar o presente, assumir suas escolhas e encontrar significado mesmo nas imperfeições. Sua jornada reflete a condição humana: um projeto contínuo de construção de sentido, em meio à incerteza e à finitude.  

O livro nos convida, como Nora, a perguntar: Estamos realmente vivendo, ou apenas existindo?  

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